domingo, 22 de dezembro de 2024

Pirilampo: O Pequeno Tenor Silvestre


Há uma nova família aqui por perto. Sons estridentes e joviais celebram os recém-chegados. Pirilampo, o amarronzado garotinho, é o maior da ninhada. Seus olhos globais gigantescos, como azeviche inconfundível, brilham com curiosidade.


Pirilampo pipila, salta e agita as asas, tentando pronunciar um passarinhês sofisticado. Sua mãe, alerta, cuida para que ele não se arrisque.


— Mãe, um dia vou voar como a Pipoca? — pergunta Pirilampo.


— Menino, a Pipoca já é grandinha. Você ainda precisa crescer — responde a mãe, sorrindo.


— Eu quero voar! — insiste Pirilampo.


— Tudo ao seu tempo, mocinho. Você vai aprender.


As árvores ao redor exalam aroma de frescura, com textura de anciões. O verde intenso invade a alma visual, emocionando o observador. Pirilampo olha para suas asas, ainda em formação, e imagina: "Serei o pirata dos céus!"


O tão sonhado dia chegou. Pirilampo, Juventino, Ruberto e Antenor preparam-se para o primeiro mergulho nas portas do infinito. Posicionados em fila, o velho mandão Mantiqueira ordena:


— Crianças, eis o grande dia! Preparamos todos vocês para isso. Agora são flechas lançadas, entendem?


Pirilampo exibe um sorriso de lado com seu bico amarelo girassol e pequenas marquinhas marrons.


Os espectadores eram variados: Mel e Pike, os cachorros da vizinha; Arnesto, o grilo fofoqueiro; Sra. Cruz, orgulhosa de seus novos amigos; e Rubaldo Ribeiro, o romântico pangaré.


A família Solavanco inicia o processo. Silêncio. Pirilampo olha aos lados. Seus pés já não sentem mais o conforto do ninho. Ao olhar para cima, vê os tão sonhados algodões. Estufa o peito e com cuidado observa Pipoca.


E assim nos céus os celestes encontram-se. A natureza da vida nos mostra que ao descobrirmos nossa essência, entenderemos que passarinhos serão sempre... passarinhos.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A Espera

Pedro, 72 anos, sentado no banco, era o maestro da espera. Sua voz interior sussurrava: "A vida é um espetáculo, e eu tenho o melhor assento."

Enquanto aguardava, o mundo girava ao redor. O barulho dos carros, um coro distante. O aroma de combustível, um perfume amargo. Pedro sentia cada fio de ar, cada sombra que dançava.

Seus pensamentos navegavam pelas lembranças: juventude, amores, perdas. A vida, um mosaico de sensações. Cada pedaço, uma história.

Ao redor, um casal, de mãos dadas, mas olhares distantes, discutia sobre o peso da vida. Sussurros tensos, como gotas de chuva em telhado de zinco.

Uma criança, com risos contagiantes, empurrava um carrinho de plástico na calçada. O barulho das rodas no asfalto era música para Pedro.

E, ao lado, um jovem dedilhava o violão. Acordes tristes, esperançosos. Sua melodia se misturava ao barulho da cidade.

Pedro sentia essas histórias, sem precisar de palavras. O casal, a criança, o músico – todos eram atores em seu teatro interior.

O rugido dos freios quebrou o encanto. O ônibus, um monstro gentil, parou ao lado. Pedro reconheceu o som, o cheiro, a vibração.

Ele se levantou, seguro, e estendeu a mão. O motorista, um fantasma bondoso, ajudou-o a subir.

Enquanto o ônibus partia, Pedro sentiu o vento no rosto. A cidade, um borrão de sons e cheiros. Ele sorriu, sabendo que estava em casa, no seu mundo de sombras e luzes.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

um



que sejamos um,
o início, a origem, o comum,
pois nada antes veio,
a essência, a alma, o meio.

pobre infinito, nunca existiria,
sem o um e sua rebeldia,
rebeldia em existir,
insistência em insistir.

clame a todos os números,
nunca poderiam sequer te ouvir,
pois se um, não fostes,
ouvidos não haveriam de existir.

coisas pequenas



luz do sol, cantos de alegria,
café quente, manhã sorri,
coisas Pequenas, o dia nasce,
coração se abre, tudo encanta.

canções a valsar, poemas de amor,
sorrisos oníricos, corações unidos,
coisas pequenas, a arte expressa,
alma se liberta, em cada linha, ofertas.

vento suave, mãos que acariciam,
carinho que aquece, andares iniciam,
coisas pequenas, no amor simples,
encontramos paz, em uma vida nada fugaz.

domingo, 15 de dezembro de 2024

balanço do mar


 

quando a sereia viu,

                 marinheiro à beira-mar,

   disse a ele sorrindo, 

                        "se avexe não, toque a nadar."


marinheiro, sorriso sorriu,

                    "minha mãe, senhora celeste,

tire-me das entranhas desse pesar,

                            de seu manto me veste."


"yemanjá é rainha, filho meu,

              aprochegue-se no abraço teu,

    quem te ensinou a nadar, meu nego?

                     foi, foi sim, o balanço do mar."

sábado, 14 de dezembro de 2024

Quatorze Horas


O som metálico, como um relógio enferrujado, ecoa indiferente à surdez dos passageiros. Emaranhados em braços inanimados, eles nada vêem. Ângela, cercada pela escuridão, silêncio e inércia, reflete sobre sua vida.


Sirenes uivam, cães latem, mulheres gritam, homens cochicham e crianças observam com olhares puros. O carro aniquilado, após perder controle, choca-se violentamente contra um poste na Avenida Cardoso de Lima.


- "Fonseca, você e três homens, precisamos agir rápido!" - ordena o capitão.

- "Compreendido, capitão!" - responde Fonseca.

- "Amaral, Silva, Soares, sigam!" - comanda o capitão.


Como uma ópera trágica, as serras dos bombeiros cortam o metal retorcido, gerando berros descontrolados ao longe.


- "Doutor Fellinni, prepare sua equipe para o salvamento!" - instrui o capitão.


"Por que desistir, Ângela? Sua carreira como atriz promete brilhar!", questiona Tom, seu companheiro de palco.


"Não aguento mais, Tom. Amanhã, serei forçada a abandonar o palco para trabalhar no emprego que meus pais arrumaram. Sem apoio, terei que renunciar ao meu sonho", responde Ângela, com voz trêmula.


A tristeza envolveu Ângela. Seus sonhos, sufocados pelas expectativas familiares. Agora, no coma, restam apenas lembranças.


Os passos de Ângela, decidimos, caminhavam ao som de valsa.


"Eis minha estréia, finalmente!"


Há poucos metros da cortina aveludada já ouve os sons da platéia, ansiosa e inquieta.


Os atores se abraçam, confiantes. Tom, Ângela, Chico e Helena sorridentes se olham e como de costume: "Vá a merda"! 


Finalmente as cortinas se abrem. A reação do público é fenomenal. Nas primeiras fileiras Ângela pode observar seus pais, Maria e Antônio, em estado de êxtase.


Ângela, por um instante imagina a ouvir um som peculiar. Como um tic-toc em seus ouvidos, mas não lhe dá atenção. Nada poderia impedir agora, tal emoção.


Habilidosos e muito bem sintonizados os atores brilham entre frases de alegria e tristeza, sombra e luz, melancolia e excitação, amor e perda, ódio e perdão. 


A platéia, por sua vez, não contém aplausos, mesmo  fora de sincronia, desejando sentir cada momento daquela empolgação.


- "Os sinais de Ângela estão muito baixos, doutor, informa o enfermeiro."


No hospital Nossa Senhora dos Milagres, o clima, como não poderia deixar de ser, é mórbido. Os pais de Ângela não tiveram tanta sorte e não terão a chance de ver a possível recuperação de sua filha. 


- "Enfermeiro Rodrigues, continue com os cuidados. Vou avisar a família sobre os pais de Ângela. Infelizmente não houve muito o que pudesse ter sido feito.

- "Sim, doutor. Cá estarei".


De mãos dadas, Ângela e sua trupe, agradecem ao público, recheados de emoção e contentamento.


Ao levemente erguer sua cabeça, Ângela nota uma sutil diferença no teatro. Uma luz branca cegando seus olhos a incomoda. O som do tic-toc mais rápido e estridente a incomoda. 


"Poderia eu estar ficando louca?" - pensa Ângela.


Ela observa com mais atenção, mas nesse momento a intensa luz a cega cada vez mais, o tic-toc a enlouquece...


De dentro da luz vê a imagem de um relógio: treze  horas e cinquenta minutos.


 A platéia sumira, a trupe lá não estava mais. Um cheiro mórbido toma conta de seu corpo. Sensações de aperto, arrepios e choques invadem-na . Choros, gritos e lamúrias são ouvidas...o tic-toc cada vez menos intenso. Olha ao seu redor: o relógio e o branco. 


O angustiante tic-toc dá lugar a uma constante linha sonora. 


Quatorze horas.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

todo o nada



ao todo tenho o nada,
tendo todo o nada, tudo és.
se nada, todo fadada,
se todo, nada queres.

queres o nada?
enganas a todos,
menos o todo,
que o nada não vê.

entre o todo e o nada,
fico com ambos.
lamúrias jocosas,
jocosos encontros.

por hoje





não demore-se com o passado,
ele é referência e pó.
não demore-se com o futuro,
ele é  ansiedade e só.

demore-se com o céu de brigadeiro,
demore-se com o toque, com o cheiro,
demore-se com a canção,
demore-se com a comunhão.

demore-se com o canto,
não demore-se com o pranto,
demore-se com seus amores,
não demore-se com suas dores.

mas apenas demore-se se quiser,
mas não muito, não hoje.
por hoje apenas seja.
por hoje apenas esteja.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

tempestade



ventos do leste,
o cheiro do mato,
como um retrato,
chegam ao meu agreste.

indicam fúria e tormento,
lavando o sofrimento,
instaurado no caos,
de uma vida abismal.

leve a angústia,
senhora das tempestades,
iansã guerreira,
dona da verdade.

e em meu ser, renasço mais forte e puro,
lavado pela chuva, liberto do escuro,
escuro que outrora a tormenta reinava,
nos braços dela, acalentada.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024


Era uma vez no Jardim.


Nos jardins da biblioteca de Uberaba,  o sol poente iluminava o reencontro de dois amigos. Frade Francisco, com sua batina simples, e Ruan Barbosa, com seu sorriso irônico.


"Quanto tempo, Ruan! O que te traz de volta?", perguntou Frade Francisco, abrindo os braços com um sorriso de lado, típico de alguém que a curiosidade provaca.


"A busca pela verdade", respondeu Ruan, "e para ser honesto, talvez essa seja uma procura inútil, pois aparentemente estou ficando escravo dela também.”


Frade Francisco sorriu. "Sim, mas e a fé Ruan? Ela não poderia ser um belo mecanismo para livrar-se dessa sensação de grilhões que pespontam seus pensamentos irriquietos?"


Ruan ergueu uma sobrancelha. "A ciência não pode provar a existência de Deus, mas pode provar a existência da nossa busca por significado."


"Um belo argumento para conduzir a responsabilidade de uma busca para outra.", diz em um tom brincalhão. “Veja Ruan,  procurar um sentido para nossa existência talvez seja exatamente desvendarmos as nossas motivações,  e que pelo que entendo, elas, as motivações, vem antes do próprio sentido. Creio, disse Frade Francisco, "a fé é um salto no escuro, mas a ciência é um mergulho no desconhecido. E se formos apenas uma ilusão?.”


Ruan sorriu. "Então, somos ilusões brilhantes. A essência humana existe, Francisco.  Eu quero prová-lo."


Frade Francisco balançou a cabeça. "A prova não é necessária. A busca é o que nos faz humanos."


Ruan, aparentemente não satisfeito, questiona: “mas meu amigo, e a fé? Como tê-la se não posso prová-la?”


“Eis a motivação da fé por si própria. É como um espelho refletindo a si mesmo ao infinito.  Veja: Se você entender como um “deus”, esse rapaz que neste momento está escrevendo essa crônica, nós talvez apenas existamos porque ele nos criou. Estendeu-nos  esse jardim, esse outono acinzentado, as flores vermelhas naquele canto, inclusive está fazendo tudo isso neste exato momento.”


“Como assim Frade?” 


“Pois bem, temos um criador. Mas e ele? Também possui um? Não sabemos e nem ele. A única coisa que ele sabe é que o café dele está acabando e precisa de um pouco mais para enviar a crônica aos amigos.”  Sorri, Frade Francisco ao perceber o desespero de Ruan.”


"Frade, também preciso de um pouco de seu vinho."

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024




Uberaba, 06 de dezembro de 2024.


Prezado Poeta,

Enquanto escrevo estas palavras, sinto-me perdido entre versos esquecidos e sonhos desvanecidos. A fama, que outrora me acariciava, agora me sufoca. O silêncio das musas é ensurdecedor.

O sentimento que o tempo que tenho à frente é muito menor que antes, causa-me angústia e dor. Como se olhasse para minhas calejadas mãos, e elas, mortas, incapazes de escreverem sequer uma simples súplica aos eternos. 

Por que estás a castigar-me, ó onipresente? Apenas suplico para que minhas lágrimas possam verter através de minhas mãos novamente.

Lembro-me dos dias em que a poesia fluía como um rio sem fim. Minhas palavras eram flechas que atingiam corações. Hoje, elas parecem pedras jogadas ao vento. O que aconteceu com aquele fogo que ardia dentro de mim?

Talvez a resposta esteja nas entrelinhas de meus próprios versos. Talvez a poesia seja a única forma de me salvar da minha própria decadência. Novamente clamo a ti: poupe-me da escuridão.

Então escrevo para reencontrá-lo, reencontrar-me. Para reacender a chama que um dia iluminou meu caminho. Para provar que, mesmo sem a vastidão, a poesia pode ser minha salvação.

Atenciosamente,

Souldré