O som metálico, como um relógio enferrujado, ecoa indiferente à surdez dos passageiros. Emaranhados em braços inanimados, eles nada vêem. Ângela, cercada pela escuridão, silêncio e inércia, reflete sobre sua vida.
Sirenes uivam, cães latem, mulheres gritam, homens cochicham e crianças observam com olhares puros. O carro aniquilado, após perder controle, choca-se violentamente contra um poste na Avenida Cardoso de Lima.
- "Fonseca, você e três homens, precisamos agir rápido!" - ordena o capitão.
- "Compreendido, capitão!" - responde Fonseca.
- "Amaral, Silva, Soares, sigam!" - comanda o capitão.
Como uma ópera trágica, as serras dos bombeiros cortam o metal retorcido, gerando berros descontrolados ao longe.
- "Doutor Fellinni, prepare sua equipe para o salvamento!" - instrui o capitão.
"Por que desistir, Ângela? Sua carreira como atriz promete brilhar!", questiona Tom, seu companheiro de palco.
"Não aguento mais, Tom. Amanhã, serei forçada a abandonar o palco para trabalhar no emprego que meus pais arrumaram. Sem apoio, terei que renunciar ao meu sonho", responde Ângela, com voz trêmula.
A tristeza envolveu Ângela. Seus sonhos, sufocados pelas expectativas familiares. Agora, no coma, restam apenas lembranças.
Os passos de Ângela, decidimos, caminhavam ao som de valsa.
"Eis minha estréia, finalmente!"
Há poucos metros da cortina aveludada já ouve os sons da platéia, ansiosa e inquieta.
Os atores se abraçam, confiantes. Tom, Ângela, Chico e Helena sorridentes se olham e como de costume: "Vá a merda"!
Finalmente as cortinas se abrem. A reação do público é fenomenal. Nas primeiras fileiras Ângela pode observar seus pais, Maria e Antônio, em estado de êxtase.
Ângela, por um instante imagina a ouvir um som peculiar. Como um tic-toc em seus ouvidos, mas não lhe dá atenção. Nada poderia impedir agora, tal emoção.
Habilidosos e muito bem sintonizados os atores brilham entre frases de alegria e tristeza, sombra e luz, melancolia e excitação, amor e perda, ódio e perdão.
A platéia, por sua vez, não contém aplausos, mesmo fora de sincronia, desejando sentir cada momento daquela empolgação.
- "Os sinais de Ângela estão muito baixos, doutor, informa o enfermeiro."
No hospital Nossa Senhora dos Milagres, o clima, como não poderia deixar de ser, é mórbido. Os pais de Ângela não tiveram tanta sorte e não terão a chance de ver a possível recuperação de sua filha.
- "Enfermeiro Rodrigues, continue com os cuidados. Vou avisar a família sobre os pais de Ângela. Infelizmente não houve muito o que pudesse ter sido feito.
- "Sim, doutor. Cá estarei".
De mãos dadas, Ângela e sua trupe, agradecem ao público, recheados de emoção e contentamento.
Ao levemente erguer sua cabeça, Ângela nota uma sutil diferença no teatro. Uma luz branca cegando seus olhos a incomoda. O som do tic-toc mais rápido e estridente a incomoda.
"Poderia eu estar ficando louca?" - pensa Ângela.
Ela observa com mais atenção, mas nesse momento a intensa luz a cega cada vez mais, o tic-toc a enlouquece...
De dentro da luz vê a imagem de um relógio: treze horas e cinquenta minutos.
A platéia sumira, a trupe lá não estava mais. Um cheiro mórbido toma conta de seu corpo. Sensações de aperto, arrepios e choques invadem-na . Choros, gritos e lamúrias são ouvidas...o tic-toc cada vez menos intenso. Olha ao seu redor: o relógio e o branco.
O angustiante tic-toc dá lugar a uma constante linha sonora.
Quatorze horas.
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